Com a crescente diluição das fronteiras geográficas e culturais, motivada pela massificação do comércio e do turismo internacional — e com a contínua diversificação de serviços e produtos —, é cada vez mais frequente depararmo-nos com a introdução de novos termos e conceitos na nossa língua (e cultura). Desde um aumento mais evidenciado da importação de palavras estrangeiras para português, no Renascimento, até à era da Internet e das redes sociais, não esquecendo todos os momentos históricos de maior troca cultural (por exemplo, os Descobrimentos), o processo de enriquecimento do nosso léxico é intemporal. Desde que existe, a língua portuguesa tem mudado connosco, acompanhando-nos e servindo as nossas necessidades de comunicação. Este processo é muito natural e não constitui qualquer ameaça para a identidade e integridade da língua. Muito pelo contrário, contribui fortemente para o seu enriquecimento. Contudo, para que o código com o qual acordámos falar uns com os outros (a nossa língua) mantenha alguma coerência, e para que este fenómeno não se torne, de facto, numa ameaça, é necessário aplicar alguma prudência e critério. E entre os vários profissionais da língua responsáveis por ajudar a mediar este fenómeno, encontram-se os tradutores.
Embora não exista regulamentação nem uma política de regulação de entrada de termos estrangeiros na língua portuguesa, existem recomendações no sentido de não se exagerar o seu uso e de não se contribuir para um certo “abastardamento da língua”, nas palavras de João Carreira Bom (aqui).
Este tema é muito polémico e não parece encontrar consenso entre linguistas e gramáticos que, ou não abordam o tema pois não é fácil de regular, ou se posicionam em perspetivas divergentes. Uma discussão interessante sobre a dificuldade de regular este fenómeno pode ser apreciada nesta resposta de Pedro Mateus, no Ciberdúvidas.
Embora não haja propriamente regulamentação neste campo, existem recomendações, como já referido, e cada linha editorial ou empresa (de tradução, por exemplo), poderá adotar uma posição mais demarcada a este respeito.
Na Gengo, os especialistas linguísticos de português europeu concordam que “A língua é como um rio: sem margens, desaparece” (João Carreira Bom). Desta forma, as traduções no par de línguas inglês-português (PT) deverão ajudar a mediar a importação de conceitos estrangeiros, evitando os exageros desnecessários no emprego dos mesmos e traduzindo todos os termos e expressões que já tenham encontrado em português um equivalente fluente (unidade USB em vez de USB drive), ou que já tinham um equivalente (desempenho em vez de performance, ou classificação em vez de ranking).
Um dos principais motivos pelos quais adotamos esta posição é o facto de isso tornar as nossas traduções mais acessíveis. Segundo um artigo do Diário de Notícias, em 2017, cerca de 59,6 % dos portugueses falavam inglês, mas apenas 25,6 % dominavam a língua, encontrando-se a maioria entre a população mais jovem (91,6 %*) e mais escolarizada (97,4 %*). Ora, estes números deixam de fora muitos portugueses que não sabem, nem têm obrigação de saber, o que é um layout fotográfico. Por esse motivo, optamos por produzir traduções que não discriminem a idade nem o grau de formação dos nossos leitores, chegando, assim, ao maior número de pessoas possível.
Então, quando devemos utilizar um termo estrangeiro nas traduções da Gengo?
É o contexto, o propósito do documento e o nível de conhecimento do público-alvo que ajudam a determinar a adequação ou a desadequação do emprego de palavras estrangeiras numa tradução. Por vezes, é até recomendável que as utilizemos, por exemplo:
- Sempre que se tenha assumido esse termo estrangeiro enquanto termo técnico numa dada indústria ou área do conhecimento e não exista um equivalente português igualmente difundido. Por exemplo, na área automotiva (e no geral) não devemos escrever almofada de ar em vez de airbag. Já no caso do conceito de Mindfulness, o uso do termo inglês é aceitável neste momento histórico da língua, mas também existem expressões equivalentes em português, como: Atenção Plena ou Consciência Plena.
- Sempre que uma sigla estrangeira não tenha uma sigla correspondente em português. Não devemos inventar siglas! Nestes casos, devemos manter a sigla estrangeira e traduzir por extenso o seu significado. Por exemplo: "Computador Pessoal (PC)" e não "Computador Pessoal (CP)"
- Sempre que o contexto assim o exija. Por exemplo, em alguns filmes e séries infantis dobradas as músicas mantêm-se na língua original por motivos comerciais (concertos ao vivo e comercialização dos álbuns da banda original).
Existem inúmeras outras situações impossíveis de listar aqui (por restrições de espaço), mas fáceis de intuir, em que a palavra estrangeira não deve ser traduzida, como por exemplo, nomes de marcas registadas ou nomes de algumas cidades, estados ou províncias estrangeiras que ainda não têm correspondente português.
Quando não devemos utilizar um termo estrangeiro?
Em todas as outras circunstâncias. Pelos motivos já referidos, nomeadamente: a acessibilidade dos textos a um maior número de leitores e mediação sensata do fenómeno de importação de termos e conceitos estrangeiros.
Por fim, importa também perceber que algumas palavras dicionarizadas em português, de tão pouco (ou nada) utilizadas que são, acabarão por contrariar as expectativas dos leitores e causar grande estranheza, o que não se pretende numa comunicação mais clara e acessível. Por exemplo, devemos preferir apagão a blecaute (ao traduzir blackout, no sentido de falha de eletricidade). Ou seja, o facto de a palavra "blecaute" estar dicionarizada não torna o seu uso automaticamente adequado numa tradução, pelo menos até à data.
A resposta à pergunta colocada no título não é totalmente consensual entre especialistas. Contudo, parece existir algum consenso na recomendação de não se fazer um uso abusivo de termos estrangeiros quando existem alternativas fluentes em português.
Como em tudo, na tradução impera o contexto, o propósito de comunicação e o bom senso e a intuição (linguística) do tradutor, que deverão ser sempre servidos pelo devido conhecimento e mestria da língua.
Continuação de boas traduções — sem o uso desnecessário de palavras estrangeiras! :-)
Sara Nogueira
Especialista linguística de português europeu na Gengo
* Nota: no conjunto de todas as línguas estrangeiras, o que não exclui o inglês.
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